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O que é ignorância moral? 12/06/2025

Denis Coitinho


Em meio a avalanche de cancelamentos inadequados ocorridos ao longo do ano de 2024, penso especialmente no cancelamento sofrido pelo jornalista e apresentador Tiago Laifer, por ter dito que o racismo não teria sido a causa de Vini Jr. não ter recebido o prêmio Bola de Ouro (WANDERMUREM, 2024), creio que seja relevante voltar a tematizar a complexa questão da ignorância moral.

Imaginem uma situação hipotética, considerando o futuro. O ano é 2225. Tudo se parece mais ou menos com nossa vida em 2025, com exceção de que as pessoas não comem mais carne de animais não-humanos, tais como vacas, porcos, ovelhas, galinhas etc., e não os criam mais para o abate.  E isto porque eles têm certeza de que criar e matar animais não-humanos é errado, uma vez que os animais são seres sencientes, isto é, sentem prazer e dor, e possuem interesses que devem ser levados em consideração. Podemos imaginar, também, que eles chegaram a este conhecimento sobre o erro de matar animais e comê-los em razão das mudanças climáticas que passaram a pautar as reflexões a partir do século XXI, passando a considerar os impactos ambientais da criação de animais em larga escala, bem como considerando o respeito à natureza de forma geral, isso representando uma mudança paulatina na consciência moral das pessoas. Também podemos imaginar que eles descobriram um tipo de proteína que substituiu perfeitamente a proteína animal.

Ainda para completar essa situação hipotética, podemos considerar que essa situação teve início com movimentos de defesa dos direitos dos animais a partir do fim do século XXI e ao longo do século XXII, tal como ocorreu com o movimento abolicionista para os escravizados africanos nos séculos XVIII e XIX, e chegou a um momento no final do século XXII de proibição da criação de animais para abate e a proibição do abate e, por fim, a proibição do próprio consumo de carne. Isto tudo acarretou, consequentemente, na mudança da consciência moral dos cidadãos, de forma a equalizar o especismo com o racismo, os tomando como erros morais com mesmo peso, considerando como uma ação abominável o criar animais sencientes, mamíferos de grande porte e aves de diversos tipos, para servir de alimento para os seres humanos. A compreensão da população nesse cenário contrafactual seria a de que os animais não humanos merecem respeito e têm direitos que devem ser respeitados, de forma a considerar a igualdade entre todos os animais como um princípio moral fundamental e inegociável.

Agora, considerando essa sociedade hipotética, como será que eles nos julgariam? Quer dizer, como será que eles julgariam as pessoas que atualmente vivem em 2025 e que comem carne, criando animais para abate em escala industrial e fazendo uso desses animais para alimentação? Será que nos veriam como bárbaros? Será que seríamos julgados como pessoas más, que não respeitam os direitos de pessoas que merecem respeito? E ao saber da existência de restaurantes específicos que servem carne e têm muita procura, como churrascarias, como será que eles nos avaliariam moralmente? Será que não seríamos vistos como, além de bárbaros, pessoas cruéis e “desumanas”? É claro que o termo “desumano” usado aqui provavelmente seria substituído por outro, incluindo o respeito aos animais não-humanos, mas claramente uma sociedade como esta nos infligiria uma forte censura moral. Essa censura moral iria na direção de considerar a ação cometida como errada. Além disso, creio ela iria na direção de expressar uma forte indignação, chegando, inclusive, na avaliação negativa sobre o nosso caráter moral, de forma similar a como nós censuramos hoje aqueles que escravizaram a população africana nos séculos XVI, XVII e XVIII, por exemplo, e foram proprietários de escravizados ou fizeram uso do trabalho escravizado.

Creio que essa situação hipotética nos ajuda a entender o fenômeno da ignorância moral, que ocorre quando um agente comete um ato errado, do qual é responsável, mas ignora de tal coisa é errada. Podemos considerar que em 2025 há uma naturalização da utilização dos animais não-humanos para alimentação, embora existam pessoas vegetarianas e veganas que não consomem carne animal ou mesmo proteína animal. Existem até diversos movimentos de defesa dos direitos dos animais, bem como existem filósofos que defendem os direitos dos animais, tais como Peter Singer (2018), Tom Regan (2004), Martha Nussbaum (2013) e Gary Francione (2008). Mas, mesmo levando isso em conta, não há proibição legal da criação, do abate, e mesmo do consumo de carne. Nem é considerado um pecado do ponto de vista religioso. Também, encontra-se proteína animal a venda em supermercados, e para o consumo em diversos tipos de restaurantes. É claro que no contexto do ano de 2025, já temos um conhecimento de que a crueldade com os animais é errada, uma vez que são animais sencientes e que possuem sentimentos. Sabemos que devemos respeitá-los e que não devemos ser cruéis com eles, já existindo até legislações contra os maus tratos aos animais, mas não sabemos coletivamente que é um erro moral nos alimentarmos deles.

Eu, com certeza, posso dizer que ignoro se comer carne é moralmente correto ou não, tendo sérias dúvidas sobre o caso. Por um lado, sei que preciso de proteína para ter uma vida saudável, e que a proteína animal garantiu nosso sucesso evolutivo. Por outro lado, sei que é errado ser cruel com animais. Mas, então, como seria correto criá-los em fazendas ou indústrias com o único objetivo de abatê-los para o consumo? Por outro lado, como ficaria a minha saúde sem esse tipo de alimentação?

Antes de seguir na investigação desse problema, vamos compreender mais detalhadamente o que seja a ignorância moral.

 

O que é ignorância moral?

            A ignorância moral ocorre quando o agente faz um ato que é errado, do qual ele é responsável, no sentido de não ser coagido, mas não sabe que tal coisa é errada. Mais especificamente, a questão é saber em que medida uma ação errada cometida por um agente responsável pode ser apropriadamente censurada, considerando que a ação errada foi cometida por ignorância de certos fatos ou normas. Por exemplo, Édipo ignorava que Jocasta era sua mãe e que Laios era seu pai, logo ele não seria um alvo apropriado de censura por incesto e parricídio. Por outro lado, se sua ignorância fosse a respeito do erro do incesto e parricídio, Édipo seria certamente censurado e essa censura seria adequada, pois todos os gregos da antiguidade sabiam que incesto e parricídio eram atos imorais. O ponto central do fenômeno desta ignorância é saber se a censura pela ignorância normativa-moral é apropriada ou se o agente pode ser desculpado, com o destaque de que o agente só pode ser responsabilizado moralmente pelo ato se ele puder ser censurado por sua ignorância, ignorância que é anterior ao ato realizado.

Mas o que seria ignorar certos critérios normativos ou não saber sobre eles? Não seria apenas ter crenças falsas, como acreditando que o incesto e o parricídio são corretos. Poderia ser o caso de se ter dúvidas sobre um assunto, como sobre a correção ou não da eutanásia e aborto, por exemplo, estando o agente em uma situação de incerteza. Também poderia ser o caso do agente fazer uso de crenças malsucedidas ou não aptas, como no caso de acreditar atualmente que a homossexualidade é errada (PEELS, 2010, p. 62-64; WIELAND, 2020).

Vejamos alguns exemplos de ignorância moral antes de elaborarmos uma definição do fenômeno. Imaginem alguém que comete um ato sexista e racista, discriminando uma mulher e uma pessoa preta, por exemplo, considerando que o agente não foi coagido para agir de forma sexista e racista. Note-se que os atos são errados e o agente é responsável por eles, no sentido em que foram cometidos pelo próprio agente sem coação externa. Agora imaginem que esses atos são cometidos no início do século XVIII, época em que a escravidão e a discriminação às mulheres eram naturalizadas. Com isso em mente, é possível estipular que esse agente ignorava o erro moral do “sexismo” e “racismo”, considerando, inclusive, que ainda não existiam esses termos que por si só já condenam a discriminação de gênero e a racial. Assim, podemos definir a ignorância moral como o fenômeno que ocorre quando um agente comete um ato errado do qual é responsável, mas não sabe que tal coisa é errada, o que pode anular a censura. Mais especificamente, ela é um:


“Fênomeno que ocorre quando um agente S comete um ato errado A do qual é responsável, sendo um alvo apropriado de censura C, uma vez que S está no controle da ação, isto é, ele sabe o que está fazendo, mas não sabe que tal coisa é errada, desconhecendo certos fatos ou normas que envolvem A, o que pode anular a censura C atribuída a S por A” (COITINHO, 2024, p. 60).

 

Veja que o ponto central do debate é saber se esse tipo de ignorância deve ser sempre censurada (HARMAN, 2011) ou se ela deve ser sempre desculpada (ZIMMERMAN, 1997) ou se esta ignorância deve ser desculpada apenas em certos casos e não em outros (COITINHO, 2024, p. 51-81).

 

Censura ou desculpa?

            De posse de um melhor entendimento do fenômeno da ignorância moral, voltemos agora ao nosso caso hipotético. Como uma sociedade que não come carne e respeita os direitos dos animais não-humanos, de forma a incluí-los totalmente no círculo moral, nos julgariam? O que eles pensariam de nós que nos alimentamos com proteína animal? Provavelmente nos veriam como bárbaros, como pessoas más e cruéis, que não respeitam os direitos básicos dos seres naturais, e que, por isso, merecem forte censura. Mas, será que isso seria adequado? Creio que não, uma vez que de forma geral as pessoas que comem carne não são monstros, isto é, não são pessoas cruéis, que agem sempre de forma errada, sem consideração aos outros. Ao contrário, geralmente, são pessoas justas, solidárias, amigas etc., que não são cruéis com os animais, inclusive convivendo com muitos deles em seus lares, que respeitam a igualdade racial e de gênero e que começam a ter até mesmo consciência ambiental. Veja que mesmo uma pessoa que é um exemplo moral como o Papa Francisco, que é tomado por muitos como uma pessoa virtuosa, que exerce a solidariedade, a justiça, a benevolência, a temperança etc., comia carne.

Creio que uma forma de avançar no debate é considerar algumas condições para a desculpa em casos de ignorância moral. Quero considerar primeiro a justificação epistêmica. Depois, gostaria de investigar o papel da má qualidade da vontade na ação. Por fim, passo a consideração do exercício de certas virtudes.

Uma forma usual para tentar obter desculpa pela ignorância de alguém a respeito de uma certa norma ou princípio moral, que é a base de um ato errado, é apelar para o argumento da justificação epistêmica. O argumento defende que um agente não pode ser censurado apropriadamente por sua ignorância quando age errado em razão de estar epistemicamente justificado para acreditar em uma dada crença falsa ou malsucedida. Por exemplo, ele leva em consideração as evidências testemunhais e factuais disponíveis, pensa seriamente sobre a questão, não ignora os argumentos contrários envolvidos. Em nosso caso específico, creio que a ignorância do erro moral em “comer carne” possa ser justificada epistemicamente. Em 2025 a maior parte das evidências factuais, argumentos acadêmicos e testemunhos até mesmo religiosos são quase todos favoráveis à utilização de animais para alimentação, sem uma profunda compreensão do significado moral dessa prática alimentar. Temos evidências médicas da necessidade da proteína animal para termos saúde; temos uma história baseada na domesticação e uso de animais não-humanos para o trabalho e alimentação; temos textos filosóficos variados que demarcam fortemente a diferença entre seres humanos e animais não-humanos, dizendo que nós temos consciência, intencionalidade e liberdade, e os animais não; temos, por fim, um contexto religioso, seja cristão, judeu ou islâmico, que reforça a distinção entre humanos e animais, afirmando a superioridade dos primeiros, não proibindo de maneira nenhuma o consumo de carne, apenas a de alguns tipos, como a carne de porco para islâmicos e judeus e a carne de gado na sexta-feira santa para cristãos, por exemplo.

Outra condição que parece relevante para a desculpa em caso de ignorância moral é identificar que o agente não está agindo com uma má qualidade da vontade, sem se importar moralmente com a ação. No caso em tela, parece que de fato não agimos com uma má qualidade da vontade ao nos alimentarmos de proteína animal. Seria diferente no caso de alguém que é cruel com os animais, sem nenhuma consideração ao seu bem-estar. Nesse caso, o agente revelaria uma má qualidade da vontade em sua ação, de forma que sua ignorância não poderia ser desculpada. Finalmente, acredito que se o agente exercitar certas virtudes, isso seria uma importante condição para a desculpa da ignorância moral. Voltemos ao exemplo do Papa Francisco. Ele comia carne, está certo, mas demonstrava uma preocupação muito grande com os seres humanos, bem como com os animais e até mesmo com a natureza. Também, se mostrava preocupado com as guerras, com a devastação ambiental, com a pobreza no mundo etc. Muitos o tomam como exemplo de pessoa justa, solidária, humilde e benevolente. Assim, o agir virtuosamente não seria um motivo relevante para se desculpar o agente por sua ignorância de que “comer carne” é errado?

Creio que a vantagem de se usar o padrão normativo das virtudes para lidar com a ignorância moral, bem como para entender melhor o fenômeno do “cancelamento”, é que ele nos oportuniza um melhor entendimento da responsabilidade moral. E isso porque as virtudes são padrões normativos sociais, isto é, instituídos e exigidos por uma dada sociedade e não padrões abstratos que deveriam ser identificados individualmente. Também, porque o padrão moral das virtudes requer deliberação particular de um agente que levará em conta as especificidades do caso. Dessa forma, a censurabilidade não estaria vinculada apenas a uma dada falha cognitiva e motivacional do agente em observar certas regras, mas sim à performance moral coletiva dos agentes, performance essa também relacionada aos arranjos sociais, políticos e econômicos que circunscrevem toda decisão particular.

 

Referências

COITINHO, Denis. A ignorância moral e o papel das virtudes. In: COITINHO, D. Contrato & Virtudes III. São Paulo: Loyola, 2024, p. 51-81.

FRANCIONE, Gary. Animals as Persons: Essays on the Abolition of animal Exploitation.  New York: Columbia University Press, 2008.

HARMAN, Elizabeth. Does moral ignorance exculpate? Ratio, v. XXIV, 2011, p. 443-468.

NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da Justiça: deficiência, nacionalidade e pertencimento à espécie. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

PEELS, Rick. What is ignorance? Philosophia, v. 38, 2010, p. 57-67.

REGAN, Tom. Empty Cages: Facing the challenge of animal rights. Rowman & Littlefield Publishers, 2004.

SINGER, Peter. Ética Prática. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

WANDERMUREM, Isabella. “Calado é um poeta”: Tiago Leifer é criticado após opinar sobre boicote de Vini Jr. ao Bola de Ouro. Portal Terra, 30 out. 2024.

WIELAND, Jan Willem. Ethics of ignorance. Routledge Encyclopedia of Philosophy. Tayor and Francis, 2020

ZIMMERMAN, Michael. Moral responsibility and ignorance. Ethics, v. 107, n. 3, 1997, p. 410-426.

 

 

Denis Coitinho é Eticista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS e Bolsista Produtividade do CNPq.

 

 
 
 

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