Nova Des(Ordem) Mundial - 11/07/2025
- Denis Coitinho
- 11 de jul.
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Denis Coitinho
Ao acompanhar atônito a guerra entre Israel e Irã que ocorre atualmente, que iniciou em 12-13 de junho de 2025, bem como o massacre que ocorre em Gaza por quase dois anos, que já matou mais de 55 mil palestinos, e isso após o ataque terrorista do Hamas à Israel em 7 de outubro de 2023 que matou mais de 1,2 mil e sequestrou mais de 250 pessoas, isso sem esquecer da guerra entre Rússia e Ucrânia que já leva mais de 3 anos e os planos da Chia para anexar Taiwan, me vem a mente uma música de Caetano Veloso de título “Fora de ordem”, que diz no refrão “(...) alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial (...)”. Essa sensação de estranhamento se dá principalmente por que estes conflitos não estão seguindo as regras da ordem política internacional que passaram a vigorar a partir do final da Segunda Guerra Mundial e serviram de orientação até o final do século XX, regras baseadas, sobretudo, em critérios normativos para promover a cooperação internacional e a paz, isso tudo a partir da condução de organismos internacionais, a exemplo da ONU – Organização das Nações Unidas, OMC – Organização Mundial do Comércio, e mesmo o TPI - Tribunal Penal Internacional. Estas guerras, ao contrário, são exemplos de conflitos sem mediações dos organismos internacionais, transcorrendo em um vácuo de poder, numa lógica de disputas territoriais que era o padrão até o fim do século XIX e início do XX.
A impressão inicial é que estamos vivenciando uma modificação na ordem política internacional, caracterizada pelo déficit democrático na governança global e também pelo desrespeito às regras internacionais, características que podem ser evidenciadas pela baixa legitimidade das organizações internacionais, como a ONU, a OMC e mesmo a OMS – Organização Mundial de Saúde, assim como dos blocos internacionais, como a União Europeia e Mercosul. Ao invés da antiga bipolaridade entre EUA e URSS, temos uma multilateralidade global um tanto caótica, de forma a identificarmos muitos interesses antagônicos na disputa do poder, sem que existam condições reais de freio a esses interesses, nem sempre legítimos, o que conduz a uma situação de impunidade.
A maneira como estou compreendendo essa transformação é na forma de uma mudança de paradigma, como defendido por Thomas Kuhn na Estrutura das Revoluções Científicas (2007), conceito usado para explicar o caráter revolucionário do progresso científico. Assim, o que estamos testemunhando atualmente seria uma “crise”, de forma que o paradigma anterior já não é mais suficiente para possibilitar a compreensão das relações internacionais atuais e o novo paradigma ainda não está disponível para nós. Para Kuhn, paradigmas são “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (2007, p. 13). Da mesma forma que houve a mudança do paradigma geocêntrico ptolomaico para o paradigma heliocêntrico copernicano na modernidade, provavelmente teremos o surgimento de um novo paradigma geopolítico para pautar as relações internacionais, mas ele ainda não parece disponível para nós.
Mas, qual era o paradigma anterior que parece estar em crise?
O paradigma anterior para as relações internacionais pode ser classificado como paradigma liberal de cooperação e busca da paz, que começou a ser construído com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945 e teve como base a criação da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse modelo se contrapôs radicalmente aos sistemas de zona de influência e equilíbrio de poder que vigorou nas relações internacionais nos séculos XVII-XIX, o que levou a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, isto é, levou a conflitos armados de grandes proporções, envolvendo um conjunto significativo de países. Para se evitar novos conflitos como os referidos, se criou uma ordem internacional baseada em regras, formuladas por organizamos internacionais, com a ONU, OMC, e mesmo o TPI, etc. Essas regras buscavam incentivar a solução de conflitos internacionais via diplomacia, bem como buscavam defender a cooperação entre os países, com a ideia de que a cooperação seria mais eficiente que a competição-conflito.
É exatamente isto que está desaparecendo. As ideias de cooperação e paz não estão mais servindo como ordenamento normativo efetivo, bem como a solução diplomática está em baixa. As regras não estão sendo cumpridas por muitos países e ninguém está sendo punido pelo seu descumprimento. Veja-se o caso da Guerra da Rússia contra a Ucrânia. Ela é um ataque direto à soberania de uma nação, com intenções claramente expansionistas, que já dura três anos e nenhuma mediação diplomática surtiu efeito, bem como nenhuma punição foi aplicada à Rússia. Também, há uma séria de movimentos regressivos contra a globalização e o internacionalismo. Um exemplo importante contra o internacionalismo é o euroceticismo que cresce na União europeia atualmente, sendo alimentado por diversos partidos, tanto de direita como de esquerda.
Importante ter em mente que a ordem geopolítica mundial após a Segunda Guerra Mundial foi marcada pela bipolaridade, com a disputa entre Estados Unidos e União Soviética. Essa rivalidade, conhecida como Guerra Fria, dividiu o mundo em dois blocos ideológicos: o capitalista, liderado pelos EUA, e o socialista, liderado pela URSS, gerando um certo equilíbrio de poder no mundo. Essa configuração influenciou as relações internacionais e a formação de alianças militares e econômicas, como a OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte - (liderada pelos EUA) e o Pacto de Varsóvia (liderado pela URSS) e perdurou até a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética, em 1991. A Europa nesse contexto, por exemplo, foi dividida em zonas de influência, com a Alemanha oriental e ocidental como símbolos dessa divisão, perdendo sua influência internacional com a descolonização de vários países da África e Ásia.
Nesse período dos anos de 1990 a 2000, surge uma nova ordem mundial.
Nova ordem mundial
O breve século XX, segundo Eric Hobsbawm, (1995), foi um período marcado por uma série de conflitos, mudanças e transformações que impactaram a sociedade global. Após a desintegração da bipolaridade, que era a característica central da Guerra Fria, o mundo passou repensar suas relações políticas, econômicas e sociais. Com a desintegração da URSS, a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, fizeram com que a geopolítica mundial entrasse em um novo paradigma, a saber, a multipolaridade. É importante destacar que o capitalismo se consagrou vencedor devido ao fracasso do socialismo soviético. A nova ordem mundial que surgiu, então, no final do século XX deve ser analisada diante do contexto das relações socioeconômicas e politicas construídas, principalmente, durante o pós Segunda Guerra Mundial.
Apesar de ser uma potência militar e econômica, os EUA não ocupam mais o local de principal economia mundial, pelo menos, não nos moldes que ocupava durante a Guerra Fria. A partir da década de 1990, surgiram diversos os blocos econômicos que começaram a se fortalecer e aparecer como importantes eixos políticos e econômicos mundiais: a União Europeia, o Mercosul, os BRICS, os novos Tigres asiáticos e a Aliança do Pacífico (APEC).
Além dos blocos econômicos e políticos, podemos citar também outros países que passaram a ter protagonismo na economia mundial, como a China, que despontou nos últimos anos como uma grande produtora de tecnologia e produtos industrializados. Afinal, boa parte do que consumimos hoje vem de lá. Além da multipolaridade no sentido político e econômico, o século XX, especialmente seu final, foi marcado por uma série de conflitos culturais. Esses conflitos foram um resultado óbvio do fim da bipolaridade e da desintegração da antiga URSS. O sentimento nacionalista e a luta pelo reconhecimento de determinados territórios são conflitos que possuem sua origem no século XX e que permanecem até a atualidade.
Do ponto de vista econômico, tivemos o capitalismo globalizado, conhecido também por globalização econômica. A característica básica foi o aumento da interdependência econômica e cultural entre os países, impulsionada pelo avanço tecnológico e pela comunicação. A bipolaridade deu lugar a multipolaridade, com a emergência de múltiplos centros de poder, com a ascensão de novas potências, como a China e o enfraquecimento da hegemonia dos EUA. Em razão dessa descentralização, muito blocos econômicos surgiram, como a União Europeia e o Mercosul. E as disputas entre os países seguia a lógica da diplomacia consolidada no pós Segunda Guerra e o respeito às regras internacionais de forma geral, bem como aos organizamos internacionais.
Quais são as mudanças atuais?
Do ponto de vista político, temos uma multilateralidade um tanto caótica e crise das democracias liberais representativas, com o crensicimento de governos populistas autoritários. Do ponto de vista econômico, temos uma crise no capitalismo globalizado, com o aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas, e grande concentração de renda. Do ponto de vista social, temos um aumento exponencial do uso das tecnologias, inclusive com o uso crescente da Inteligência Artificial. Veja-se como exemplo as guerras atuais, que são guerras aéreas, com utilização de drones e mísseis guiados. Do ponto bélico, as guerras atuais estão retornando a serem disputas territoriais e estão desrespeitando os direitos humanos, não distinguindo entre soldados e civis, e inclusive fazendo limpeza étnica.
É claro que essa mudança na ordem mundial já vinha ocorrendo já desde o início do século XXI, principalmente a partir da Guerra dos EUA contra o Iraque em 2003, mas agora essa mudança está sendo mais disruptiva. Um exemplo desta disrupção está sendo o segundo mandato do governo Donald Trump, que em menos de cem dias, abalou os alicerces na antiga ordem geopolítica, redefinindo alianças globais, voltando-se contra parceiros estratégicos, atacando as regras de organismos internacionais, bem como iniciando uma guerra comercial nacionalista, que se confronta claramente com os princípios básicos de uma economia globalizada.
Daniel Gallas, em artigo para a BBC News (2025), realiza uma análise interessante no que diz respeito as principais mudanças do governo de Donald Trump que estão criando uma nova ordem mundial:
1. Fim do respeito a territórios internacionais
Trump tem sugerido que quer mudar o mapa dos EUA ao rebatizar o Golfo do México para Golfo da América, controlar o Groelândia e o Canal do Panamá e tornar o Canadá o 51º Estado Americano.
2. Redefinição do papel da China
Um país fundamental na nova ordem mundial, que está tendo seu papel redefinido pelas políticas de Trump, é a China. Na era da Guerra Fria, analistas diziam que o mundo era "bipolar", com duas grandes superpotências que rivalizavam entre si: EUA e União Soviética. No começo dos anos 1990, com o colapso da União Soviética, especialistas já falavam em um mundo unipolar — em que havia apenas os EUA como superpotência. Mas o novo milênio viu a rápida ascensão da China no cenário internacional. O mundo voltou a uma situação de bipolaridade, mas com uma nova superpotência no lugar da União Soviética, rivalizando com os EUA.
3. Redefinição do papel da Europa e da Rússia
Uma das relações mais estáveis do pós-Guerra está sendo radicalmente modificada, a saber, as relações entre EUA e Europa. Isso ficou muito claro em um discurso dado pelo vice-presidente J.D. Vance em fevereiro de 2025 em uma conferência de segurança na Alemanha, no qual ele praticamente anunciou o fim da aliança histórica. Em suas palavras: “A ameaça que mais me preocupa em relação à Europa não é a Rússia, não é a China, não é qualquer outro ator externo. O que me preocupa é a ameaça interna, o recuo da Europa em relação a alguns de seus valores mais fundamentais, compartilhados com os EUA”.
4. Fim da era dourada da globalização
Outro ponto levantado pelos especialistas sobre a nova ordem mundial é o possível fim da era dourada da globalização. A globalização foi uma construção lenta da economia global, que aconteceu ao longo de décadas e resultou em uma cadeia complexa de produção e consumo. Hoje produtos complexos, como carros e telefones celulares, têm seus componentes produzidos em diversas partes do mundo. Para Elisabeth Braw, a guerra comercial de Trump é um ataque a essa globalização. O presidente diz que quer que muitas empresas que vendem produtos aos EUA fechem suas operações no exterior e abram fábricas no país, gerando empregos para os americanos. A noção é justamente o oposto da globalização, em que cada país se especializa em produzir algum produto, e o comércio internacional integra todas as cadeias, gerando bens mais baratos para todos (Gallas, 2025)
A esse respeito é importante comentar o aumento da tarifa de importação que Trump anunciou para vários países, especialmente para o Brasil, taxando os produtos brasileiros em 50%. A justificativa para tal, para além da balança desfavorável em relação ao Brasil, o que é falso, pois os EUA são superavitários na relação comercial com o Brasil, alegou motivos políticos, de perseguição ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Também, se pode especular que essa retaliação veio para atingir os BRICS, que na declaração dos líderes dos BRICS, divulgada no final da cúpula do Rio de Janeiro, fez duras críticas às sanções econômicas uniliterais, leia-se o tarifaço de Trump, além de defenderem o fortalecimento e cooperação do Sul Global (León, 2025). Talvez isso já seja um forte indício dessa nova multilateralidade beligerante que está se desenhando.
A pergunta a se fazer é se essa mudanças geopolíticas atuais significam um ponto de virada na história mundial, semelhante ao que aconteceu após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, ou mesmo na década de 1990 com a queda do Muro de Berlim e dissolução da URSS, que introduziu um novo paradigma nas relações internacionais, ou se estamos apenas atravessando um momento temporário de tensão. Ainda é cedo para apresentar uma resposta definitiva, mas tudo indica que, infelizmente, estamos diante do surgimento de um novo paradigma que se mostra regressivo em relação aos dois modelos anteriores
Referências
GALLAS, Daniel. As quatro mundanças de Trump que estão criando uma nova ordem mundial. BBC News Brasil. 02/05/2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj68rxg28j1o. Acesso em 17 maio 2025.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
LEÓN, Lucas Pordeus. Sanção de Trump contra Brasil é chantagem política e mira o Brics. Agência Brasil, 10/07/2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-07/sancao-de-trump-contra-brasil-e-chantagem-politica-e-mira-o-brics. Acesso 11/07/2025.
Denis Coitinho é Eticista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS e Bolsista Produtividade do CNPq.