O conceito de imaginário radical em Cornelius Castoriadis 20/09/2023
- Celso Azambuja
- 20 de set. de 2023
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Celso C. Azambuja
A instituição imaginária da sociedade de Cornelius Castoriadis é sem dúvida uma das obras centrais da antropologia e da filosofia social e política contemporânea, publicada originalmente em 1975 e traduzida no Brasil em 1982. Trata-se de um tratado verdadeiramente monumental que pretende, entre outras coisas, propor a ideia da presença de um imaginário radical constituindo o substrato através do qual a humanidade institui o social-histórico. A questão do imaginário radical surge no contexto do pensamento filosófico de Castoriadis a partir de sua problematização do social-histórico cujo processo de elucidação revelou a presença deste elemento imaginário. Em Castoriadis, o processo de elucidação do social-histórico está intrinsecamente ligado ao seu projeto social-histórico que consiste na perspectiva da auto-alteração social na história. Trata-se do projeto da autonomia a partir do qual surge o problema fundamental da alteridade na história. Presente ao longo da história humana, a alteridade é, também, condição necessária do projeto de auto-instituição social.
Com efeito, esta alteridade radical da história só pode ser pensada como criação de novas formas – eidos –, na instituição da sociedade. Esta criação social-institucional é, fundamentalmente, constituída pelo elemento imaginário.
A partir daí, coloca-se a questão essencial de como pensar este social-histórico, definido como "criação"? Deste modo, assistiremos ao longo de toda a obra A instituição imaginária da sociedade uma tentativa titânica de elucidar e criar uma forma de pensar que consiga superar os limites do “pensamento herdado”. Castoriadis procura mostrar como esse pensamento e a lógica conjuntista-identitária que lhe é caraterístico é incapaz de pensar o "ser" do social-histórico como autocriação e alteridade perpétua. O pensamento herdado sempre refletiu o ser como determinidade, quer dizer, o ser, para ele, é ser determinado, e ser determinado desde "alhures", ou seja, desde outro lugar que não ele mesmo. Em outras palavras, o ser do social-histórico nunca foi pensado em si mesmo. Em primeiro lugar porque, para o pensamento herdado, o social-histórico – ou o seu ser, por ser ser – é determinado ou pela razão, como em Hegel, ou pela técnica, como em Marx; sendo a razão e a técnica, então, determinantes de seu ser. Em segundo lugar, porque, de acordo com os imperativos da lógica identitária-conjuntista, para o pensamento herdado o ser do social-histórico deve ser "definido" e "distinto", deve ser um termo "discreto".
Mas, precisamente, o ser do social-histórico revela-se como um mundo de “significações imaginárias" que não podem ser nem totalmente definidos nem precisamente distintos. É por esta razão que pensar o imaginário é, segundo Castoriadis, mortal para o pensamento herdado que não pode existir neste signo de indeterminação e criação perpétuas as quais não permitem determinar, de uma vez, o ser do social-histórico.
O social-histórico é "magma", ou melhor, "magma de magmas". Ele é perpetuamente criação de novas formas, novos eidos; instituição de instituições; instituição de significações imaginárias dentro das quais a sociedade encontra um sentido e uma orientação; ele é instituição de si mesmo. E só é assim porque nele, como posição primeira, há o "imaginário radical".
No entanto, este magma de magmas de significações imaginárias não é caos indiferenciado. O caos indiferenciado aqui só poderia surgir do ponto de vista da filosofia tradicional, que pretende captar o ser dentro do universo da lógica identitária e conjuntista. Mas também, como já se disse, não pode ser compreendida simplesmente dentro desta lógica, de saber total, bem ordenado e distinto. Não ganhamos nada, não elucidamos nada do social-histórico e seu elemento essencial, o imaginário radical, se ficamos presos a esta oposição: saber total ou caos indiferenciado. Não é porque não podemos ter um saber total e absoluto das coisas que vamos nos deixar levar pela ignorância. Não é porque um médico não conhece o corpo todo de um indivíduo que ele não vai curá-lo nas partes que pode. É neste contexto que o problema da praxis pode ser referido, pois ela não está interessada de fato no saber total, mas como fazer consciente que pode agir mesmo possuindo conhecimentos parciais.
Deste modo, por exemplo, o marxismo, objeto de uma longa, rigorosa e vigorosa crítica de Castoriadis, não entendeu nem pode entender o elemento imaginário. O marxismo esteve preso e está preso ainda na clausura do pensamento herdado, pois pretende explicar o social-histórico, ou seja, as instituições sociais como determinadas pelas infra-estruturas tecno-econômicas. Castoriadis argumenta para mostrar como esta concepção é falsa, na medida em que mesmas bases técnicas podem produzir instituições e relações sociais absolutamente diferentes. É o que acontece com a indústria automobilística em que as mesmas bases técnicas na francesa e inglesa acabam por produzir efeitos diametralmente diferentes, ou seja, passividade dos trabalhadores franceses e intensa agitação entre os ingleses.
As bases técnicas certamente cumprem um papel nas determinações sociais, mas isto não pode ser tomado em sentido absoluto, tal como pretendeu o marxismo. Há sempre um conjunto de significações imaginárias interagindo, em nível cultural, consciente e inconscientemente, nos indivíduos e coletividades humanas e determinando os valores, as ações e os sentimentos. Tais significações determinam uma concepção de ser humano, de técnica, de natureza e, por sua vez, refletem diferentes tipos de sociedade. Estas significações são criações do imaginário radical e que, em sociedades como a capitalista, tendem a transformar o humano em autômato, a técnica em autômata, a natureza em objeto, não importando o que possa acontecer com a natureza e os próprios seres humanos. São inúmeras as sociedades que tinham uma concepção absolutamente distinta. A economia, por exemplo, é uma significação imaginária central exclusivamente da sociedade capitalista. Para a sociedade grega antiga, por exemplo, a significação imaginária central era certamente a política. Significações as quais devem regular e orientar o conjunto do movimento da sociedade e que devem permitir que os indivíduos pensem, avaliem, falem e façam.
Contudo, é certo que a instituição social-histórica implica em duas dimensões conjuntista-identitárias fundamentais que são o legein – o dizer/representar social – e o teukhein – o fazer social. Estas dimensões, no entanto, não estão separadas da dimensão imaginária da sociedade. Ao contrário, o teukhein e o legein estão implicados, determinam e são determinados pelas significações imaginárias dominantes de uma sociedade.
Tanto o legein como o teukhein encontra no "primeiro estrato natural" uma sustentação. Mas o que o legein (distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar-dizer) e o teukhein (juntar-ajustar-fabricar-construir) fazem com este primeiro estrato natural não é uma simples apropriação, digamos assim, mecânica, pois estão implicados em uma relação própria com o imaginário e suas significações. Assim, por exemplo, a relação que uma criança vai estabelecer com o teukhein e o legein é mais do que o fato trivial de que ela precisa ser cuidada. A forma, no entanto, como ela o será não está inscrita nem no dado natural nem também no teukhein e legein como simples dimensões conjuntista-identitárias do fazer/representar social, mas estará essencialmente implicada no "mundo de significações imaginárias" da cultura na qual ela nasceu e vive. É certo que o próprio legein terá que operar o esquema da "designação" na sua dimensão conjuntista-identitária; terá que dizer é aquela criança. Mas a própria forma como essa criança será representada e constituída, será determinada essencialmente pelos signos imaginários da sociedade. Se sua sexualidade será estimulada ou reprimida ou escondida vai depender precisamente da representação imaginária que a sociedade em questão faz do ser criança e da sexualidade, dos tipos de alimentos, livros, e assim por diante. O legein e o teukhein por si mesmos não podem fazê-lo, nem tampouco o simples dado natural irá determiná-lo.
Assim, Castoriadis abordará o interessante problema da relação entre a imaginação e o inconsciente, especialmente no que diz respeito às pulsões. O que faz com que exista uma pulsão oral, sexual, anal no indivíduo? Será o simples dado natural? Por que a pulsão anal é investida pelo indivíduo? Para Castoriadis tal pulsão só existe porque o ânus é investido imaginariamente pela sociedade, quer dizer, pela relação que tal sociedade tem com as fezes, que a mãe tem com seu filho na hora de limpá-lo. Do contrário, por que não uma "pulsão respiratória"? - pergunta Castoriadis, mostrando que se a pulsão é natural o nariz poderia ser também investido de pulsão. É o elemento imaginário que cria, institui, estabelece em nível inconsciente esta pulsão.
Assim também pode ser entendido o problema da falta. O que o desejo deseja é aquilo que falta. Mas como pode faltar para o inconsciente aquilo que falta no consciente? Para que possa faltar algo à psiquê é preciso que a psiquê seja ela mesma criação de si, criação original. É preciso que ela crie fantasmaticamente o que falta. Sendo assim, então não é o dado natural que faz, a este nível, aparecer a falta. Somente isto pode explicar o fato de o "bebê anorexo", como pretende Castoriadis, se deixar morrer, pois sua psiquê é mais forte que o dado biológico da fome.
Com efeito, o imaginário é o elemento que estará presente nas sociedades auto-instituintes, como criação original de novas significações, instituições e formas do social-histórico. Mas também estará presente, em certo nível, nas sociedades instituídas, na medida em que ele é o elemento que constitui a história e que confere à história uma unidade e um sentido. O imaginário é o fator unificante da história. Este fator não poderia ser o elemento racional, posto que então a sociedade seria totalmente transparente e racional o que, na menor observação, pode-se ver que ela não é, muito ao contrário.
Deste modo, para o autor é somente com base na noção de imaginário que podemos compreender realmente as instituições sociais, ao mesmo tempo, em que é preciso reconhecer que o próprio real é permanentemente uma criação imaginária. Somente compreendendo a noção de imaginário poderemos entender as diferentes sociedades, as sociedades ditas outras que existiram ou existem e os diferentes papéis atribuídos às pessoas e instituições sociais. Os modos como os homens estabelecem relações entre si, com os deuses, a técnica, a natureza, o corpo, a alma, a economia e a política.
Tais formas só poderão ser compreendidas em sua complexidade a partir do conceito de imaginário radical que, a cada momento, foi e é capaz de instituir, como criação originária perpétua, o conjunto das significações e das formas de cada sociedade.
Segundo Castoriadis, foi este mesmo imaginário que criou há 25 séculos a filosofia e a ideia da democracia: momento em que a humanidade passa a se perguntar acerca de seu próprio destino a partir de si mesma. Este imaginário radical que originou uma nova atitude dos homens diante do imaginário instituído e que é a atitude auto-reflexiva dos homens sobre sua própria história, é o mesmo imaginário que poderá criar novos eidos e novas instituições sociais que façam com que a humanidade como tal reassuma aquele projeto inaugurado na Atenas antiga como resultado da democracia e da filosofia, o projeto de auto-instituição reflexiva e deliberada sobre seu próprio destino histórico.
Referência
CASTORIADIS C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
Celso C. Azambuja é Doutor. Professor e pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS – Brasil. E-mail: ccandido@unisinos.br.
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